A 8 de março de cada ano, desde 1909, marca-se o Dia da Mulher.
São cento e doze anos de celebração, mas muitos mais são de luta pelo direito à igualdade perante o Homem.
De forma a solenizar este dia, decidi escrever acerca de uma das canções que, na minha interpretação, poetizam esta luta. Da autoria do cantautor e poeta brasileiro, Chico Buarque, o tema “Geni e o Zepelim” foi incluído no seu álbum de 1979, Ópera do Malandro.
Geni é uma mulher de todos e de ninguém, olhada de lado pelos seus conterrâneos. De todos foi namorada, desde que se lembra de ser gente. Uma mulher de pensamento livre e que agia pela sua própria vontade e crença.
De tudo o que é nego torto,
Do mangue, do cais, do porto,
Ela já foi namorada.
O seu corpo é dos errantes,
Dos cegos, dos retirantes.
É de quem não tem mais nada.
Dá-se assim desde menina,
Na garagem, na cantina,
Atrás do tanque, no mato.
É a rainha dos detentos,
Das loucas, dos lazarentos,
Dos moleques do internato.
E também vai amiúde,
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir.
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir.
Todos os seus conterrâneos a hostilizavam pela vida pouco submissa que levava. Era senhora de si, apesar dos tempos não o permitirem. Pela forma como encarava o seu quotidiano, era mal vista por todos, que a espezinhavam e humilhavam, por não serem capazes de aceitar o que lhes parecia diferente e por entrar em conflito com os valores tradicionais.
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita p’ra apanhar,
Ela é boa de cuspir,
Ela dá p’ra qualquer um.
Maldita Geni!
Pelo meio desta grande pressão que Geni sofria, a cidade vê-se sobrevoada por um Zeppelin gigante. Instalou-se o pânico, quando viram os canhões a si apontados, com anúncios da destruição que se abateria sobre a cidade. Do centro da ameaça, mostrou-se o comandante, que desceu à terra para revelar que os pouparia a todos, a troco de uma noite com a formosa e bela senhora que escolhera. Havia considerado dizimar toda aquela comunidade, pela sua perversidade. Não o fez, encantado com aquela mulher.
Um dia surgiu, brilhante,
Entre as nuvens, flutuante,
Um enorme zepelim.
Pairou sobre os edifícios,
Abriu dois mil orifícios,
Com dois mil canhões assim.
A cidade apavorada,
Se quedou paralisada,
Pronta p’ra virar geleia.
Mas do zepelim gigante,
Desceu o seu comandante,
Dizendo “Mudei de ideia.
Quanto vi nesta cidade,
Tanto horror iniquidade,
Resolvi tudo explodir.
Mas posso evitar o drama,
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir.”
Para espanto de todos, Geni era a mulher pela qual o comandante do Zeppelin se encantara. Continuavam incrédulos por aquela escolha. Não podia ser Geni!
Essa dama era Geni,
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita p’ra apanhar,
Ela é boa de cuspir,
Ela dá p’ra qualquer um.
Maldita Geni!
Geni, por sua vez, tinha a mesma opinião. Não queria crer que havia sido a escolhida e, para mais ainda, não era o seu desejo. Com a sua humildade, levara o encanto ao invasor, mas, no fundo, a sua vontade própria ainda era uma prioridade. Não queria aquele homem que a desejava.
Esta ideia de ter opinião deixara a cidade em alvoroço. Geni tinha, na sua mão, a salvação de todos e, por capricho, estava a rejeitar salvá-los. Esta mania de mulher ter opinião…
Mas, de fato, logo ela,
Tão coitada, tão singela,
Cativara o forasteiro.
O guerreiro tão vistoso,
Tão temido e poderoso
Era dela prisioneiro.
Acontece que a donzela
E isso era segredo dela,
Também tinha seus caprichos.
E a deitar com homem tão nobre,
Tão cheirando a brilho e a cobre,
Preferia amar com os bichos.
Ao ouvir tal heresia,
A cidade em romaria,
Foi beijar a sua mão.
O Prefeito de joelhos,
O Bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão.
Toda a cidade implorara a Geni pela sua salvação. Todos aqueles que a espezinhavam até então, viram que haviam errado. Era aquela mulher, a mulher de todos, a única que podia preservar a vida dos que dela fazia um ser sem qualquer dignidade.
Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar,
Você vai-nos redimir!
Você dá p’ra qualquer um.
Bendita Geni!
Geni passou de ser maldita para uma bendita figura, a quem deviam a possibilidade de viver. Geni era melhor do que eles. Assentiu ao clamor do povo e foi salvá-los, apesar da sua vontade ditar o contrário. Deixou-se levar pela misericórdia e pela esperança de ver ali o ponto de viragem na sua vida. Deixou de ser a Geni hostilizada para ser uma mártir que salvara a comunidade da morte prematura. Entregou-se ao comandante que dela abusou até mais não querer. Abandonou-a, aliviada pelo fim do seu martírio, no entanto, devastada pelo sucedido. Vendo o Zeppelin escapulir-se por entre as nuvens, a cidade festejou, cantando para Geni, a sua salvadora.
Foram tantos os pedidos,
Tão sinceros, tão sentidos,
Que ela dominou seu asco.
Nessa noite lancinante,
Entregou-se a tal amante,
Como quem dá-se ao carrasco.
Ele fez tanta sujeira,
Lambuzou-se a noite inteira,
Até ficar saciado.
E nem bem amanhecia,
Partiu numa nuvem fria,
Com seu zepelim prateado.
Num suspiro aliviado,
Ela se virou de lado
E tentou, até, sorrir.
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir.
Geni, no seu sofrimento, ouvia a felicidade nas ruas. Havia salvado aquela população. Seria hora de se sentir agradecida e reconhecida por todos aqueles a quem poupara a vida. Escutou, então, pelas ruas da cidade:
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita p’ra apanhar,
Ela é boa de cuspir,
Ela dá p’ra qualquer um.
Maldita Geni!
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita p’ra apanhar,
Ela é boa de cuspir,
Ela dá p’ra qualquer um.
Maldita Geni!
Geni sofrera e dera o seu corpo para que um forasteiro poupasse quem a mal tratara a vida toda. Geni deixara-se levar pela compaixão.
No entanto, Geni era mulher e, como tal, nem a longevidade que lhes deu à vida era suficiente para deixar de ser hostilizada. Não tinha direito a ter opinião, não tinha direito sobre o seu corpo e nenhum reconhecimento teve por deixar para trás as suas convicções por forma a salvar o seu povo. Não suportavam a ideia de igualdade…
A sociedade – e, neste caso, falo especificamente de Portugal – tem vindo a desenvolver-se no sentido certo, o sentido de olhar a mulher como uma parte crucial da sociedade. Porém, há um longo caminho a percorrer. Este caminho tem de ser percorrido por todos. O feminismo não é uma luta que compete apenas às mulheres, mas a todos os justos, que acreditam piamente no valor e capacidade de qualquer pessoa na a nossa sociedade.
Em Portugal, a igualdade de oportunidades está longe de ser uma realidade no que toca ao género. Os cargos de chefia são, maioritariamente, ocupados por homens, ainda que as mulheres sejam a grande parte da massa trabalhadora. Em média, para a mesma função, a Mulher não tem um vencimento equivalente ao Homem, ainda que façam precisamente o mesmo trabalho. Em casa, em média, a Mulher passa mais tempo na execução de trabalhos não remunerados do que o Homem. São exemplos do que o nosso país tem de melhorar e todos somos parte ativa desta luta.
Vivam as Mulheres. Não só hoje, mas todos os dias!