Não te deixes assim vestir

Estreio-me neste espaço de debate sobre a nossa sociedade com um dos temas que percorre o passado, o presente e o futuro do nosso país, da Europa e do Mundo. Vemo-nos abalados por um vírus mais previsível do que foi (e ainda é) a COVID-19 mas que, ainda assim, nos apanhou de surpresa. Uma crescente onda de ódio invadiu as nossas vidas sem nos apercebermos da sua chegada. Com uma América trumpista e um Brasil bolsonarista, o crescente número de casos numa França que, cada vez mais, se assume ao lado de Le Pen e uma Itália de Salvini, foi a vez de Portugal ser também infetado. Foi-nos entrando pela casa dentro uma ideia de que D. Sebastião estava a chegar. Do nada, tudo passou a ser posto em causa, chegando ao ponto de a própria ciência o ser. Até a superfície esférica do nosso planeta passou a ser vista como uma grande conspiração guardada desde antes do nascimento de Cristo, sem objetivo aparente. Por um lado, tudo foi posto em causa; Por outro lado, surgiram as verdades absolutas cujos portadores foram escondendo o seu instinto de lobo, com a pele de um cordeiro.

Em Portugal, devido a este ceticismo repentino, um dos mais marcantes momentos da História de Portugal passou a ser visto como uma celebração da desgraça, quando nunca deixou de ser o dia que nos garantiu um país livre e democrático; o dia que nos deu a liberdade de sermos, pensarmos e dizermos; o dia que nos garantiu a liberdade de discordar e lutar pelo que acreditamos; o dia que nos deu a liberdade para viver. Era impensável que, quase 47 anos depois, a defesa de uma ditadura fosse mera questão opinativa, mas passou a sê-lo. Vemos, hoje, um ódio de tal forma entranhado na sociedade, que se passou a olhar o 25 de abril com desdém, como se estivéssemos melhor com um Salazar em cada esquina. Não tenho idade suficiente para ter vivido o fascismo salazarista, mas vivi anos bastantes para saber que não o quero de volta.

Todo este assunto se torna de um relevo ainda maior quando estamos a dias de um sufrágio que ditará a representação máxima da nação. Entre os sete candidatos à Presidência da República, com opções para todos os gostos, da esquerda à direita, André Ventura é a antítese de tudo aquilo em que acredito. Não se lhe pode, no entanto, negar a inteligência que lhe permite extrair os sentimentos mais obscuros do ser humano e alimentar-se do ódio de cada português. É com essa repulsa colhida que consegue centrar em si as esperanças do eleitorado mais desatento, que passara a olhá-lo como o salvador deste país, o Messias, o tão aguardado D. Sebastião e o perpetuador do Quinto Império. Desenganem- se.

O discurso populista e demagogo puxa a si os olhares, como tantos outros o fizeram na História e, ainda hoje, o fazem. Os resultados ficaram à vista de todos, mas teimamos em cair na trapaça outra e outra vez. Divide o país, faz correr o ódio e aponta o dedo a tudo e a todos. Entre tantos disparos, o alvo há-de ser atingido e fará soar as palmas de quem, desatento desde sempre, procura a resposta simplista aos problemas complexos que a nossa sociedade nos guarda. Pelo caminho, por via do Twitter, dá descrédito à liberdade, ataca a comunicação social, insulta quem a ele se opõe e vitimiza-se sempre que isso acontece. Não faz lembrar ninguém? Por cá, não temos Capitólio, mas temos Palácio de São Bento…

Em 1983, Sérgio Godinho lançava, no seu álbum Coincidências, o oitavo da carreira, uma música que dá título a esta opinião, “Não te deixes assim vestir”. Foi há 38 anos e ainda hoje é perfeitamente atual e aplicável à situação que descrevo.

“Mas há coletes que são de forças
Por mais que o digam não ser.
Não te deixes assim vestir!”

Este colete, por muito que recuse esse estatuto, tem a sua credencial fascista e extremista bem estampada.

Dia 24 de janeiro, é imperativo um voto consciente, com o peso de todos os prós e contras de cada candidato, para uma Presidência da República que se quer sóbria e firme na representação dos interesses do país, mas mais do que isso, uma Presidência da República que seja determinada na garantia de que a Democracia não está em perigo. A luta por um Portugal livre e democrático, um Portugal mais igual, mais tolerante e mais culto está na força do voto popular. Não deixemos essa decisão nas mãos dos outros. Só assim teremos um Portugal melhor.

Não podemos deixar que se desprezem os valores de abril, pelos quais tantos lutaram, cantaram, escreveram e, até, perderam a vida, para que da liberdade que eles não viveram pudéssemos desfrutar. Não basta não ser fascista. É preciso ser-se antifascista!
Ai Portugal, se realmente não quiseres querer-te mal, não te deixes assim vestir!

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