Num dia ameno do mês de Abril de 2020, tive de ir ao centro da cidade de Amarante. Uma terra que aprendi a amar, de há 14 anos a esta parte; uma terra que estima as suas gentes; preserva a sua identidade e eleva a cultura.
A cidade estava paralisada.
Parei na Praça da República. Não ouvi uma palavra, na língua de Shakespeare, a esvoaçar sobre o rio Tâmegae sob a Ponte de São Gonçalo. Não ouvi o arrulhar do pombo que estava na Varanda dos Reis da Igreja de São Gonçalo. Não chegou o aroma dos Doces Conventuais, da confeitaria localizada a poucos metros.
Olho para o rio Tâmegae anoto a sua forma descontraída. Ele que, por vezes, “revolta-se”, inunda a zona histórica e desespera comerciantes. Da Serra de San Mamede ao rio Douro, uma das maiores belezas que o rio toca, durante o seu percurso, é a Ponte de São Gonçalo.
Nesta ponte, projectada por Carlos Amarante, desenrolaram-se, há cerca de 211 anos, combates viscerais. As tropas napoleónicas conseguiram conquistar a ponte (desconheço se os quatro varandins semicirculares foram do seu encanto), mas não aguentaram muito tempo. A astúcia do General Silveira e a bravura dos seus soldados, alguns sem armas de fogo, reforçam a “tese” de que, em relação às forças, nem sempre ganham os que estão em maior número e melhor armados.
Tantos anos passaram, desde os combates, e visualizamos, ainda, marcas de bala de canhão e mosquete na fachada da Igreja de São Gonçalo. A curiosidade sobre São Gonçalo palpita. Para a Igreja Católica, é beato. Para o povo, é santo. Santo António casa as novas. São Gonçalo recebe as “encalhadas”.
Vou adocicar. Venham as lérias e foguetes. Amêndoas e açúcar escuro, para as lérias. Amêndoas, ovos e folhas de hóstia, para os foguetes. São Doces Conventuais imortalizados pelas irmãs clarissas, do Mosteiro de Santa Clara.
As invasões francesas voltam a ter destaque. O fogo que atearam ao Mosteiro de Santa Clara, no dia 18 de Abril de 1809, provocou danos materiais, mas o património imaterial manteve-se intocável. O respeito; a tradição; o património e a herança deram as mãos. As irmãs tiveram a dignidade de partilhar os saberes com algumas famílias da região, que continuaram o legado.
Regresso ao mês de Abril de 2020. Quando ia embora, estava prestes a entrar no meu automóvel e deparo-me com um detalhe que me faz travar o passo. Vejo, na estátua de Teixeira de Pascoaes, localizada no Jardim da Alameda, uma máscara de pano sobre a boca e nariz do grande homem das letras. Admirei a originalidade e profundidade do detalhe, durante alguns segundos e, após isso, fotografei-o.
A minha memória guardou a imagem impactante e o seu significado, sobre os tempos que correm. É algo que me faz pensar. A máscara continuará a fazer parte do nosso dia-a-dia e, tenho a certeza, o escultor da estátua, António Duarte, aplaudiria este acréscimo.
Em “Verbo Escuro”, Pascoaes parece pressentir o desafio das próximas gerações, quando escreve: “Nascer é por a máscara”.
Sempre que vou trabalhar, passo a 200 metros da Casa de Pascoaes, onde, aí, o poeta abraçava o Tâmega e o Marão e recebia Raul Brandão; José Régio; Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros.
Amarante honra a nossa literatura e as artes. É uma terra que trabalha a cultura; que lança sementes; rega e aduba. É, também, a terra de Amadeo de Souza-Cardoso e Agustina Bessa-Luís.